quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Analfabetos do amor - Nelson Rodrigues

1. Amigos, temos uma vastíssima experiência amorosa. A história do coração humano começou, precisamente, em Adão e Eva. Era o primeiro casal de terra e com uma vantagem considerável: - Não tinha parentes, não tinha vizinhos, não tinha fornecedores. Alguém poderia objetar (talvez com razão) que a serpente fazia as vezes de sogra, de cunhada, de amiga etc.

2. Mas o que eu queria dizer é o óbvio ululante, ou seja: - Com Adão e Eva houve o primeiro flerte, o primeiro namoro, o primeiro casamento. Eu ia acrescentar - e a primeira infidelidade. Mas trair com quem? Quero crer que Eva foi, talvez contrafeita, uma mulher rigorosamente fiel. Eu imagino o que teria sido, num confortável paraíso, a noite de núpcias do primeiro casal.

3. Pois bem. Isso ocorreu há muito tempo. Eu vos digo: essa experiência amorosa, que vem através dos milênios, não nos adianta de nada, nem nos abriu os olhos. O homem, que sabe de tudo, nada sabe de amor. Eu diria, se me permitem, que em amor o homem é tão analfabeto como um pássaro. Ou melhor: o pássaro tem, a seu favor, a vantagem do instinto puro, livre e clarividente. Ao passo que cada um de nós carrega, nas costas, não sei quantos preconceitos, não sei quantos equívocos. Eis a verdade: Falta-nos a espontaneidade de uma cambaxirra. E vou mais longe - o nosso amor é triste.

4. Olhem em torno. Vejam os namorados que conhecemos. Eles amam sem alegria, sim, todo o mundo ama sem alegria. Essa tristeza, inerente ao sentimento amoroso, decorre de que não sabemos amar. O homem mais sensível e lúcido é, diante do ser amado, um incerto ou, pior do que isso, um inepto. Ele não sabe o que dizer, o que fazer, o que pensar. O que nós chamamos "romance" é a soma de erros, de equívocos engraçadíssimos. Vejam: - não encontramos palavra justa, exata, perfeita; não nos ocorre o galanteio que o ser amado desejaria escutar.

5. E, no entanto, a partir de Adão e Eva, o homem já teve bastante tempo para aprender como gostar, como amar. O amor exige, entre dois seres, uma linguagem própria, um idioma específico. Mas não usamos essa linguagem ou parecemos não entender esse idioma. As pessoas que menos entendem - como se falassem línguas diferentes - são as que se amam. Dir-se-ia que o amor, em vez de unir, separa. Cabe então a pergunta - por quê? É simples. Porque amamos errado, porque não sabemos amar.

6. A rigor, o momento mais doce do amor é o flerte. O flerte não dilacera, não envenena. Um simples olhar, de uma luz mais viva; um sorriso leve é quanto basta para que dois seres experimentem a esperança de uma comunhão docemente infinita. Mas o flerte - eu prefiro o flerte à paquera - o flerte é, normalmente, uma promessa que não se cumpre. Pois, em seguida, o namoro abre uma fase de perspectivas inquietantes. Fala-se em 'briga de namorados', tão comum e, eu diria mesmo, obrigatória. Mas não são os pequeninos atritos que marcam e vão, pouco a pouco, ferindo e destruindo o sentimento amoroso.

7. Se o homem soubesse amar não elevaria a voz nunca, jamais discutiria, jamais faria sofrer. Mas ele ainda não aprendeu nada. Dir-se-ia que cada amor é o primeiro e que os amorosos dos nossos dias são tão ingênuos, inexperientes, ineptos, como Adão e Eva. Ninguém, absolutamente, sabe amar. D. Juan havia de ser tão cândido como um namoradinho de subúrbio. Amigos, o amor é um eterno recomeçar. Cada novo amor é como se fosse o primeiro e o último. E é por isso que o homem há de sofrer sempre até o fim do mundo - porque sempre há de amar errado.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Shortbus

Sexo é a coisa mais natural da face da terra, quase todo mundo faz ou fez. Uns o praticam de forma comportada e comedida. Outros, mais ousados, foi não foi cometem uma loucurinha. E uns tantos outros pintam e bordam. Mas, quando o assunto é exibir isto na tela a coisa muda de figura. À exceção dos filmes denominados “pornográficos” ou de “sexo explícito”, não é muito comum em obras ditas sérias, comerciais, ou que integrem o mainstream do mercado audiovisual, nos depararmos com pitocas eretas, conas ardentes, ejaculações, auto-felação e sexo grupal às claras. Pois bem, Shortbus, o novo filme de John Cameron Mitchell (Hedwig, Rock Amor e Traição) tem tudo isto e muito mais. E o melhor: tudo mostrado sem apelação ou com a intenção de chocar (claro, sempre haverá quem pense o contrário, mas para estes o conselho é: continuem assistindo a novela das sete). Mitchell simplesmente não esconde o jogo, ou seja, mostra a vida como ela é.

O Shortbus (referência aos ônibus escolares amarelos típicos da vida americana) é um clube underground em Nova Iorque onde as pessoas se reúnem para conversar, discutir arte, política, beber, dançar e fazerem sexo no melhor estilo dos anos áureos da liberação sexual. Só que o cenário agora é uma NY pós-11 de setembro, pós-aids e os protagonistas são personagens desses que encontramos de montão em todas as grandes cidades do mundo. Para amarrar sua história, Mitchell nos faz conhecer Sofia, uma terapeuta que nunca teve um orgasmo, embora finja ser a mais saciada das esposas para o marido Rob. Ao tentar ajudar um casal gay cuja relação não anda lá muito animada, ela é levada por eles para o tal clube. Lá ela vai conhecer Severin, uma dominatrix, um jovem voyeur, um velho político e outras criaturas que, pouco a pouco, vão mostrando como deixar de lado as aflições e angústias com a mais prática das receitas: faça amor não faça a guerra.

Embora estejamos contando isto, tentando manter a maior serenidade, ver Shortbus não deixa de despertar uma certa excitação voyeurística e também a curiosidade de saber como foi possível rodar tudo aquilo com tanta tranqüilidade. Passeando pela web não é difícil encontrar fatos pitorescos relacionados ao projeto do realizador. Mitchell, em primeiro lugar, queria fazer um filme sobre sexo, mas que fosse bem humorado, e cujos atores estivessem disponíveis para todas as travessuras que ele imaginava. Para compor o elenco, ele então colocou um anúncio na Internet e recebeu 500 fitas de candidatos. Desses, ele selecionou 40 que tiveram de gravar uma cena de 10 minutos contando uma experiência sexual que tiveram.

Depois, ele realizou oficinas com os escolhidos e os atores foram também participando da elaboração do roteiro e dos diálogos. O resultado é convincente para este tipo de obra, pois Mitchell, como já fizeram outros diretores, soube dosar fantasia e vida real na medida certa. O casal gay James e Jamie são mesmo namorados, Justin Bond é realmente uma famosa drag-queen novairoquina e para filmar as cenas de orgia, o próprio Mitchell e os cinegrafistas ficaram todos nus. Se ao lerem esse texto, vocês ficarem instigados, não hesitem. Shortbus não é nenhuma obra-prima revolucionária, mas vale a pena ser visto. Tem gente bonita, engraçada, uma trilha musical bacana e assume de uma forma clara e direta que namorar sem culpa faz um bem danado.

-Revista O Grito-