domingo, 28 de outubro de 2007

O Diário de um Louco - Nicolai Gogol

3 de outubro.

     Aconteceu-me hoje uma aventura insólita. Levantei-me bastante tarde e, quando Mavra me trouxe as botas limpas, perguntei-lhe que horas eram. Ao ouvir que já passava muito das dez, comecei a vestir-me com mais pressa. Confesso que não tinha a menor vontade de ir à repartição, pois já sabia com que cara feia o nosso chefe de seção me receberia. Há muito tempo que ele vive dizendo-me: — “Então, irmão, que tens? Que confusão é essa na tua cabeça? De vez em quando te agitas como quem ficou asfixiado pelo vapor da estufa, e atrapalhas o serviço de tal maneira que nem o próprio Satanás o desembaralharia, pões minúscula no título, não colocas nem data nem número!” Maldito palerma! Decerto está com inveja de mim, porque o meu lugar é no gabinete do diretor, onde aparo as penas de S. Exª. Numa palavra, eu não teria ido à repartição se não fosse a esperança de lá encontrar o caixa e, talvez, extorquir daquele judeu alguma coisa por conta do próximo ordenado. Mas que homem! Para ele fazer um adiantamento sobre o mês que vem — Deus do Céu! — mais depressa virá o juízo final. Pode a gente pedir, estar em extrema necessidade, rebentar, que o diabo do velho não adianta nada. Entretanto em casa — todo o mundo sabe — leva bofetões até da cozinheira. Não vejo, aliás, a utilidade de trabalhar na repartição. Não dá vantagem alguma. Já na administração estadual, nos tribunais e nas recebedorias o caso é outro. Lá, cada funcionário se encolhe no seu cantinho e vai escrevinhando, metido num fraque sujo, com uma cara de se escarrar nela; mas veja-se a casa de campo que ele aluga. Ninguém lhe ofereça de presente uma taça de porcelana, pois dirá logo: — “Isso é presente para um doutor”; mas aceitará uma parelha de cavalos, um carro ou uma peliça de castor de trezentos rublos. De aparência tão delicada, fala baixinho: — “Empreste-me, por favor, o canivetezinho para fazer ponta na peninha” — mas depois limpa o requerente de tal forma que mal lhe deixa a camisa do corpo. É verdade que o serviço da repartição é diferente: há uma limpeza como nunca se vê numa repartição estadual; as mesas são de madeira vermelha e,os chefes nos tratam por “o senhor”. Com efeito, se o serviço não tivesse este caráter honroso, confesso que há muito teria deixado a repartição. Vesti um velho capote e apanhei o guarda-chuva, pois chovia torrencialmente. Nas ruas não se via ninguém. a não ser umas camponesas que cobriam a cabeça com as saias, uns comerciantes russos sob guarda-chuvas, e alguns cocheiros.

De nobres, apenas um funcionário trocava pernas. Avistei-o numa encruzilhada e logo disse com os meus botões: — “Bonito, meu caro: em vez de ir à repartição, ficas a andar atrás da pessoa que vai à tua frente, olhando-lhe as perninhas finas.” Belo patife o nosso irmão funcionário! Palavra de honra, um oficial não lhe leva vantagem: basta passar uma mulher de chapéu, e ele a aborda inevitavelmente. Enquanto meditava assim, vi um carro aproximar-se da loja perto da qual me encontrava. Reconheci-o logo: era a caleça do nosso diretor. — “Mas ele nada tem que fazer nesta loja — pensei. — Realmente: é a filha dele.” Encolhi-me rente à parede. Um lacaio abriu a portinhola, e ela saltou do carro feito um passarinho. Como olhava à direita e à esquerda, como levantava as sobrancelhas e as pálpebras... Deus do Céu! senti-me perdido, sim, inteiramente perdido. Foi então para isso que ela resolveu sair em dia tão chuvoso? Digam-me agora que as mulheres não são loucas por todos aqueles trapos. Ela não me reconheceu, pois eu mesmo fiz tudo para esconder o rosto; estava com um capote bastante surrado e, além disso, de feição antiga. Usam-se hoje capotes de gola comprida, e o meu era de gola curta e sem lustre. A cachorrinha dela, como não teve tempo de acompanhá-la até à loja, ficou na rua. Conheço essa cachorra. Chamam-na Medji. Nem decorreu um minuto, e de repente ouvi uma vozinha fina: — Bom dia, Medji. Vejam só! Quem será mesmo? Olhei em redor, e vi aproximarem-se duas damas sob o mesmo guarda-chuva, uma velhinha, a outra moça. Mal haviam passado, ouvi perto de mim a mesma voz: — Que modos feios, Medji! Que diabo! Vi que Medji e outro cachorro, vindo atrás das senhoras, se andavam farejando um ao outro. — “Estarei completamente bêbado? — perguntei a mim mesmo. — Mas isto me acontece raras vezes.” Então vi a própria Medji pronunciar estas palavras: — Não, Fidel, estás enganado. Au, au! Eu tenho estado — au, au! — muito doente. Que cachorra esquisita! Fiquei bastante surpreendido, devo confessá-lo, ao ouvi-la exprimir-se em linguagem humana. Mas depois, ao refletir direitinho no caso, deixei de estranhá-lo. Com efeito, já se deram no mundo muitos fatos parecidos. Dizem que na Grã-Bretanha um peixe veio a terra e pronunciou duas palavras numa língua tão estranha que os sábios, por muito que a procurem determinar, há três anos, ainda não chegaram a nenhum resultado. Li também nos jornais acerca de duas vacas que entraram numa loja e pediram para si uma libra de chá. Mas surpreendi-me outra vez ao ouvir Medji acrescentar: — Eu te escrevi, Fidel. Provavelmente Polkan não te entregou a minha carta.

Assim receba eu o meu ordenado! Nunca em minha vida tinha ouvido dizer que os cachorros sabiam escrever. Só mesmo um fidalgo pode escrever direito. Sem dúvida, há também uns caixeiros e até uns servos que assinam o nome de vez em quando, mas na maioria dos casos aquilo é puramente mecânico; eles não têm nem pontuação nem estilo. Fiquei bastante admirado desse caso. É verdade que de algum tempo para cá tenho ouvido e visto coisas que nunca ninguém ouviu nem viu. — “Bem — disse comigo mesmo — vamos atrás dessa cachorra para saber o que ela é, e o que pensa.” Abri o guarda-chuva e pus-me a seguir as duas damas. Elas atravessaram a Rua da Ervilha, entraram na dos Burgueses, dali passaram à dos Marinheiros, e finalmente se detiveram diante de um casarão junto à ponte Kokuchkin. — “Conheço esta casa — disse comigo mesmo. — É a casa de Zverkof.” Que coincidência! Quanta gente não mora ali: quantos cozinheiros, quantos hóspedes e quantos irmãos funcionários vivendo uns em cima dos outros como cachorros! Ali mora também um amigo meu que sabe tocar trombeta. As senhoras subiram ao quinto andar. — “Está certo — pensei — desta vez não subo, mas anoto o endereço e não deixarei de utilizá-lo na primeira ocasião.”

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